;

Habeas Almas

sábado, 21 de junho de 2008

O Foguete Quase Detonou....

Durante toda minha juventude morei no mesmo lugar: No prédio da Quaraí 83, próximo a BR116, no Bairro Niterói em Canoas. Para os mais antigos o local era conhecido como 'antiga 19' numa referência ao movimentado ponto de ônibus que havia ali. Na verdade esta expressão 'antiga 19' ficou também conhecida para indicar essa região do bairro que era reconhecidamente marcada por brigas, roubos e outros eventos violentos que invariavelmente exigia a presença policial.

Neste cenário, eu e meus irmãos nos criamos e aprendemos a conviver com pessoas de todo tipo, desde aqueles que apesar das imensas dificuldades se dedicavam ao trabalho honesto como também aos que preferiam sustentar-se à margem da lei e cometiam desde delitos leves e até crimes mais graves.

Esta interação com os chamados 'bocas brabas' se dava no dia-a-dia fosse num jogo de futebol, numa conversa na esquina, numa roda de violão ou ainda no balcão da oficina de aparelhos eletrônicos de propriedade de meu pai . Para completar a biodiversidade daquele ambiente havia também os inquilinos das casas de aluguel que meus pais possuíam ao lado e aos fundos de minha residência. Na maioria gente trabalhadora e sofrida, sendo muitos oriundos do interior que vieram para a região metropolitana tentar uma sorte.

Aprendi ao longo deste convívio a ter um certo traquejo ao lidar com pessoas que em algumas situações se mostravam imprevisíveis e violentas. Tinha vezes que uma simples conversa descambava prá ofensa e daí prá porrada, sem falar nas vezes que alguém decidia mostrar a força de uma arma no exercício da retórica.

Mas engana-se quem acha que a ameaça de uma arma por si só implicaria no término de um debate. Não. Eu presenciei uma vez um cara no meio de uma discussão sobre música, futebol ou outra banalidade puxar a arma da cintura, engatilhar e colocar na cara de um outro colega como que dizendo:
--"E aí quem está com a razão agora?"
Naquele momento, embora eu fosse apenas espectador, senti a adrenalina subir e o natural instinto de sobrevivência me exigir que eu me fastasse logo. Mas o sujeito que foi intimidado, o Gordo, ficou sentado ali no meio-fio com a arma engatilhada na testa e,como se a situação estivesse sob controle continuou sustentando o seu ponto de vista no debate e ainda por cima provocou:
--" Se tu vai puxar essa merda atira duma vez."
O cara que sacara a arma, deu um sorriso e guardou-a. Até hoje eu me pergunto, se aquele gesto do Gordo era coragem ou certa banalização do valor da própria vida.

Como este acontecimento, presenciei vários outros que hoje reconheço, ao longo do tempo desenvolveram um mim um certo grau de vigilância que até hoje suscita brincadeiras dos amigos.

Quando mais tarde quando passei a estudar no Colégio São Paulo, escola particular, ampliei meu círculo de amizades passando a integrar uma turma de mesmo nível econômico e familiar que o meu. Nas festinhas que freqüentávamos, devido a minha experiência no tal 'ambiente hostil' já citado, eu era aquele que sempre alertava quando uma briga ou confusão estava na iminência de acontecer. Além deste 'sexto sentido' que nos livrou de algumas enrascadas justamente por ter nos dado uma certa dianteira na hora de correr, a minha residência, na rua Quaraí, me dava uma outra vantagem que na época fez uma grande diferença: Eu contava com algumas amizades que freqüentemente eram acionadas para me garantir a segurança fosse na saída da colégio ou de alguma festa. Analisando hoje, quando décadas já se passaram vejo que em alguns momentos exagerei na utilização de minha 'guarda particular'. Sobretudo porque 'comprei' algumas brigas que nem eram minhas.

Uma vez , no colégio um cara bateu no meu amigo Miltinho. Quando eu soube eu fui lá e dei um soco na cara do sujeito, sem nem ouvir a versão dele prá briga. Na seqüência, o tal cara arrumou uns amigos prá me pegar na saída do colégio. Consegui fugir no primeiro dia e como eu sabia que eles não iriam desistir, resolvi atacar. Peguei uns camaradas lá da Quaraí, se não me engano o Frega, o Muminha e uns outros e fomos até um bar onde os inimigos jogavam snooker, há algumas quadras do colégio.

O Frega entrou no bar e já foi provocando, não quis nem saber: pegou as bolas e foi colocando nas caçapas no meio do jogo dos caras. O primeiro que perguntou o que era aquilo levou uns tapas dele e do Muminha. Os outros se intimidaram e ficaram quietos.

Aí o Frega anunciou que se alguém se metesse comigo outra vez eles voltariam ali e bateriam em todos. Na saída ele ainda puxou um 'Chaco' da cintura, fez algumas evoluções desajeitadas enquanto mantinha no rosto um careta de mau.

Saí dali aliviado. De fato nunca mais vi aqueles caras nas imediações da escola.

Outra vez estávamos eu e meus amigos Nando e Beto caminhando pela Venâncio Aires, em direção à minha casa na Quaraí quando, ao passar pela frente de um bar uns caras gritaram:

--Porque que tão olhando seus 'vasilhas'?

Na época, a referência ao utensílio doméstico era o mesmo que chamar alguém de 'viado', ou seja, os caras nos ofenderam de graça e não poderíamos retrucar pois além de serem em maior número eram uma 'rafa' conhecida ali das imediações.

Ficamos quietos e seguimos nosso caminho.

Quando cheguei próximo a minha casa encontrei o Foguete (leia-se FUguete), um camarada ali da Quaraí que além de forte era bom de briga. Sobre este cara haviam histórias de briga que eram contadas por vários conhecidos ali da rua. Ele mesmo vivia contando as confusões em que batia nuns 3 ou 4. Relatos esses que sempre eram confirmados por outros que estavam na roda, o que não garante a veracidade pois desconfio que muitos tinham era medo de contestá-lo.

Contei então pro Foguete o que tinha acontecido e ele logo se prontificou a ir até o bar:

-- Eu vou lá e vocês me mostram os caras...

Concordamos pois o sangue ainda estava quente por termos sidos ofendidos sem termos feito nada que justificasse aquela provocação.
Quando chegamos no bar, o Foguete parou na frente da porta e perguntou:

-- São esses aí?

Antes que eu respondesse uns dois ou três já foram saindo e indo embora devagar pois conheciam o meu amigo e provavelmente a lenda que três ou quatro eram pouco prá ele.

Demorei um pouco prá responder pois já estava até com pena dos sujeitos. Mas também não podia deixar de indicar alguém pois nas próximas vezes o Foguete não se disporia a me ajudar.

Respirei fundo e falei:

--Aquele alemão ali...

Os mais corajosos que haviam sobrado no interior do bar perceberam a deixa prá se evadirem do local: Não era com eles, o alemão que se virasse.

De fato o cara que eu apontei foi o que tinha nos provocado.

O Foguete então avançou prá cima dele. Enquanto caminhava ele ia sacando um trezoitão prateado que estava escondido na cintura. Ato contínuo, ele colocou o canhão no rosto no alemão e falou:

-- Porque tu provocou o meu primo?

O coitado do sujeito se encolheu todo colocando as mãos entre a arma e sua cara de apavorado:

-- Pelo amor de Deus Foguete, não atira... Eu falei brincando, eu conheço o cara e até já fui na
casa dele. Eu estudei com o irmão dele...

Tanto eu quanto o Nando e o Beto ficamos totalmente surpresos pois não sabíamos que o Foguete estava armado. Imagina se ele atira no cara agora, nós vamos entrar numa fria sem tamanho... Que eu conhecia esse alemão até que era verdade, ele era um conhecido ladrãozinho das redondezas. Quanto a ele já ter ido na minha casa, bem, resolvi não contestar porque a situação estava prá lá de tensa. Vai que o Foguete dispara aquele troço... Já estava até me arrependendo de ter reclamado da provocação pro Foguete quando ele falou pro cara:

-- Então tu nunca mais faz isso. Porque se tu fizer eu te detono...

Depois disso, colocou de novo o trabuco na cintura, puxou a camisa por cima prá esconder a arma e ainda me perguntou:

-- Quer dar umas porradas nele?

Eu disse que estava satisfeito. Foguete fez um gesto com a cabeça nos convidando a ir embora. Ainda dei uma olhada prá trás e vi o alemão na mesma posição com os olhos fechados de pavor, todo encolhido com as mãos frente ao rosto colado na parede do bar.

Alguns anos depois eu soube que Foguete tinha sido assassinado a tiros.