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Habeas Almas

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Um passeio em Garopaba com os amigos Marcelo e Carlinhos



EU,MARCELO E CARLINHOS EM GAROPABA
Na foto acima estão eu (Daniel) e Marcelo Gonçalves em Garopaba, lá nos idos dos anos 80. Esta viagem foi sensacional e rendeu muitas histórias que são frequentemente lembradas quando a gente se reúne.
Fomos eu, Marcelo e o Carlinhos (irmão do Jorge ET "Rato Wakeman"). O Carlinhos tinha uma namorada em Araçatuba (em Santa Catarina próximo de Garopaba) que tinha arrumado quando acompanhou a banda Antares que foi tocar o Carnaval lá. É bom que se diga que era um namoro ainda bem no início que ainda não lhe conferia muita proximidade com a família da moça. Faço questão de citar estes detalhes porque os acontecimentos que se seguiram naquela nossa estada por aquelas bandas, incluindo as frequentes jantas e cafés da manhã que nós três filávamos na casa dela é no mínimo uma tremenda cara-de-pau.
Já na saída da rodoviária de Porto Alegre começaram os motivos pra gozação. As poltronas foram compradas separadas. A fome que começou a fazer a minha barriga roncar  me causou um certo constrangimento.
O Marcelo numa poltrona do corredor, sentou do lado de uma senhora com uma criança que apesar de já meio grandinha, viajava no colo da mãe. Pois a dita cuja passou uma boa parte da viagem comendo chocolate e passando as mãos melosas na manga da camiseta do nosso amigo. A uma certa altura da viagem ela teve uma dor de barriga e passou a pedir licença a cada dez minutos ao Marcelo pra ir ao banheiro. Além inconveniente que estava causando a ele, o cheiro nada agradável que emanava toda vez que ela abria a porta do sanitário fazia os demais passageiros trancar a respiração por alguns segundos.
O Carlinhos estava do lado de uma outra senhora que de vez em quando cismava em viajar de pé, talvez pra aliviar alguma dor nas pernas e ficava no corredor apoiada no encosto da poltrona dele. Eu lá de trás me divertia vendo ele se inclinando no sentido oposto da mulher cada vez que ela cochilava de pé numa tentativa discreta de ‘desencostar’ dela...
Já era noite avançada, quando num trecho bastante escuro da BR 101 o Carlinhos nos acordou:
--Vamo lá que tâmo chegando...
Olhei pela janela e só via os vultos das árvores e um nevoeiro danado que não animava muito querer descer do ônibus.
Mas pegamos nossas coisas e seguimos o parceiro até a cabine do motorista. Ela falou alguma coisa pro cara e logo o ônibus parou.
Descemos os três naquele local ermo que, se já estava escuro, quando ônibus se afastou então... Tivemos que esperar alguns segundos até que a visão se acostumasse e o Carlinhos finalmente identificasse um caminho entre as árvores que levaria até o vilarejo.
-- Puta que pariu, mas isso aqui tá bem assustador.
Falei algo parecido com isso e comecei a falar da semelhança daquele momento com a cena do início do filme "Um Lobisomem Americano em Londres" que havia pouco tempo eu tinha assistido. Pra quem não se lembra, no filme dois estudantes americanos andam em meio ao nevoeiro num vilarejo no interior da Inglaterra. Dali a pouco um lobisomem os ataca.
A minha insistência em tentar assustá-los assumiu um caráter mais cômico do que macabro e passamos a nos divertir e rir muito da situação. Especialmente quando começamos a nos aproximar de alguns botecos e os moradores dali olhavam todos prá nós como se fôssemos uma aparição saindo do nevoeiro naquele caminho entre as árvores.
Chegamos na casa de um conhecido do Carlinhos que concordou em nos ceder o terreno para armarmos a nossa pequena barraca. O Carlinhos ficaria hospedado na casa da namorada, se não me engano.
No dia seguinte àquela primeira noite de sono mal dormido, o Marcelo descobriu que tinha uma pedra embaixo da barraca bem do meu lado de dormir, o que justificava eu ter passado a noite tentando me alinhar sem conseguir. E como ele tirou sarro da minha cara por causa disso... até hoje ele conta esta parte da história acrescentando que eu supostamente teria dito a ele que eu suspeitava estar com alguma problema na coluna, quando o que estava desalinhado era o próprio chão.
Mas a minha oportunidade de retribuir a gozação chegou logo. Num dia pela manhã olhei pela janela da casa do cara que nos havia cedido o terreno e vi a empregada da casa, uma menina negra, chupando a lata de leite condensado que o Marcelo tinha deixado na geladeira deles para não estragar.
Ou seja,a neguinha dava umas 'bicotas' no leite Moça e o Marcelo todo dia passava um pouco no pão...


A distância da praia propriamente dita era de mais ou menos uns 18 Km e era ruim transpô-la a pé, numa época que nem cogitávamos em comprar um filtro solar. A grana escassa que tínhamos mal deu prá sobreviver naqueles dias que lá ficamos. Cada dia que passava e nossa provisão de alimentos escasseava, mais ousados ficávamos no que se refere a ‘filar um rango’ na casa da namorada do Carlinhos.
Lembro da primeira noite que sentamos à mesa com a família toda prá jantar.
A cena era meio surrealista, pois todos ficaram praticamente em silêncio nos observando. O Carlinhos dê-lhe a contar histórias numa tentativa de quebrar o gelo daquela situação.
Num canto da sala havia uma TV preto e branco antiga ligada na novela. Essa TV era simplesmente uma 'viagem', era daquelas que foram usadas antigamente e que já vinham de fábrica com um vidro em três cores que se sobrepunha ao tubo de imagem. Ou seja,era uma TV 'a cores' num certo sentido, embora as cores permanecessem estáticas em três faixas horizontais que cobriam todo a tela.
O Carlinhos volta e meia perdia a compostura e pegava salada da travessa direto com as mãos, sem usar talheres. E eu e o Marcelo ali, nos contendo e nos esforçando muito prá não cair na gargalhada.
Quando digo que nossas provisões eram poucas, estou falando sério. Lembro que as bolachas que havíamos levado foram quase todas consumidas na demorada viagem de ônibus de Porto Alegre até lá. Sobrou uma lata de salsicha,uma lata de goiabada e uma lata de pêssego em calda. Alguém pode estar se perguntando,porque levar pêssego em calda e goiabada? Era o que tinha sobrando no armário de casa. E quando não se tem muita grana, qualquer coisa comestível vira dinheiro. Arroz, batata, essas coisas, nem cogitávamos levar porque não só não tínhamos qualquer espécie de fogão como também não sabíamos cozinhar.
Lembro que num dos últimos dias dessa estadia em Santa Catarina comemos goiabada com salsicha e pra descer tomamos a calda do pêssego misturada com água. Essa improvável combinação culinária demonstra a criativa capacidade adaptativa do homem em situações de privação.
Por falar em passar necessidade quero lembrar que foi nessa nossa viagem que apelidamos o nosso amigo César Fraga (Cesinha da banda Big Zen Voodoo) de ‘Tubarão’. Isso porque encontramos ele na praia catando alguns peixes doados pelos pescadores numa tentativa de garantir a refeição diária. Pois no momento que nós o encontramos ele tava com um filhote de tubarão martelo na mão. Foi muito cômico. Batemos até uma foto que quando eu achar eu coloco aqui.
A ida para praia, portanto, não era muito fácil. Primeiro pela distância já citada entre a tal de Araçatuba, onde ficava nossa barraca e Garopaba. Segundo porque ônibus que cobrisse aquele trajeto era apenas um ou dois por dia.
Um dia de tanto caminharmos no sol nos deslocando pra praia, o Marcelo ficou com o pé muito queimado que passou a inchar e incomodá-lo até a hora de voltarmos pra Canoas. Noutro dia voltando também a pé, um touro se 'encarnou' em mim. Ficou me fitando e se aproximando com um olhar amedrontador. Suspeitei que era por causa do desenho de um sol vermelho enorme na minha camiseta. Tive que apressar o passo e até correr um pouco prá sair da linha de alcance do bicho.
Diante disso a alternativa era pegar carona. Certo dia pegamos carona num caminhão que estava transportando um barco. Como não tinha lugar na cabine fomos na carroceria,um de cada lado do barco.
Os caras resolveram nos sacanear e passavam acelerados pelos buracos da estrada e davam risada na cabine olhando pelo retrovisor e vendo nós dois passando mal lá atrás. É que o barco de vez em quando se deslocava para um ou outro lado e quase nos derrubava do caminhão.
Ao chegarmos na praia eles queriam que ajudássemos a descarregar o barco. Saímos fora e não demos nem conversa pra eles.
Acho que foi neste mesmo dia que,depois de alguns mergulhos no mar, ao sairmos da água percebermos que a camiseta do Pink Floyd nova do Marcelo tinha desaparecido da areia. Procuramos ali por perto e nada de encontrar. Certamente alguém tinha roubado. O desaparecimento da camiseta configurou-se um problema sério porque havia uma placa no ponto de ônibus que alertava dizendo que sem camisa não era possível viajar no coletivo.
Já estávamos admitindo a hipótese de ter que encarar a pé o trajeto de volta quando encontramos uns caras jogando futebol na beira da praia. Suspeitamos daquele pano branco que servia como uma das traves. Dito e feito: Era mesmo a camiseta do Marcelo. Pegamos a dita cuja que já não tinha mais o aspecto de uma camiseta nova. Na verdade estava toda molhada, cheia de areia e bem esticada. Provavelmente alguém a tinha torcido ou algo parecido. O nosso amigo teve que a usar naquele estado mesmo.Era o único jeito de voltar de ônibus. Mas que ficou esquisito ficou. A camiseta branca encardida, cheia de areia e com a gola enorme caída prá um dos lados deram uma aparência deprimente ao Marcelo. Em solidariedade eu e o Carlinhos poupamos ele das gozações, por digamos uns 10 minutos...



Depois de alguns dias naquela pindaíba, sem dinheiro nem pro rango básico, partimos pro desespero: tomar inclusive café da manhã na casa da namorada do Carlinhos. Até prá nossa tremenda cara-de-pau aquilo foi o limite. Em seguida o Marcelo resolveu semandar de volta prá casa.
Minha memória me trai e já nem me lembro como eu e o Carlinhos fomos embora também. Só lembro que na viagem de volta tínhamos comprado dois pãezinhos que comemos a seco prque a grana tinha definitivamente acabado.
Apesar de todos os contratempos, esta viagem foi um dos momentos que considero mais mágicos de minha juventude do qual me recordo frequentemente e me orgulho de ter vivido.



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